sábado, 28 de setembro de 2024

Crítica Um acontecimento à moda antiga - espetáculo Acontecimento em Vila Feliz - por Diogo Horta

ACONTECIMENTO EM VILA FELIZ

E nas comemorações dos nossos 30 anos de amor ao fazer artístico, nosso espetáculo de rua, ACONTECIMENTO EM VILA FELIZ, recebe um olhar sensível, uma escuta atenta e uma escrita reflexiva sobre o espetáculo, o teatro de rua e esse encontro delicioso com o público. Um presente de 30 anos. Agradecemos ao Diogo Horta @diogohorta e ao Horizonte da Cena @horizontedacena

Em novembro faremos mais uma apresentação do nosso ACONTECIMENTO EM VILA FELIZ.

Para ler a crítica no site do Horizonte da Cena, acesse
https://www.horizontedacena.com/um-acontecimento-a-moda-antiga/

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Um acontecimento à moda antiga

* * * Esse texto faz parte do projeto arquipélago de fomento à crítica, com apoio da https://www.corporastreado.com/


Crítica a partir do espetáculo “Acontecimento em Vila Feliz”, da Cia. Pierrot Lunar visto no dia 14 de julho de 2024 no Parque Municipal Américo Renné Giannetti.

Por Diogo Horta.


Antes mesmo de começar, o espetáculo já começou. Um charmoso fusquinha branco ocupa o centro da cena com um alto falante em cima tocando músicas de serenatas. Outros pequenos elementos completam a disposição cenográfica, mas o mais importante é a paisagem além: a rua, a praça, o parque. Para mim, foi uma árvore em seu esplendor, iluminada pela luz do sol no Parque Municipal de Belo Horizonte, juntamente a todo o entorno com vegetação e atmosfera agradável que o próprio parque já possui.


Nesse cenário acolhedor, tanto o carro antigo quanto as músicas nos transportam para outra época e para uma cidade interiorana. As pessoas vão chegando e se assentando onde dá. Outras vão passando e têm a curiosidade despertada para aquela instalação que ocorre no meio do parque: “_ É teatro!” uns dizem. “_É aqui? Senta aqui. Posso me sentar?!” E ali também estão os atores já se organizando às vistas do público: cumprimentam uns conhecidos, saúdam colegas, dão as boas-vindas aos passantes que resolveram se achegar.

                                                                         Foto: Andréa Rêgo Barros/PCR

 

Tudo vai se construindo de pouco em pouco, com cuidado, chegando de mansinho e aquecendo a plateia. A partir de então, o público é levado a acompanhar uma história que abalou a cidade de Vila Feliz. As primeiras informações do ocorrido são trazidas ao público, após o fato já ter sido consumado, pelo jornal impresso e sensacionalista da cidadezinha, que apresenta as notícias do ocorrido com os seguintes dizeres (conforme a publicação distribuída ao público): “Uma senhora da melhor sociedade simula um parto e foge de casa com um monstro. O marido, engenheiro agrônomo, abandona o serviço de que era diretor, depois de praticar um desfalque. Trata-se, ao que parece, de antigo líder comunista. Indignação popular.”


Enquanto entregam o jornal para o público presente, os atores repetem essa manchete em voz alta várias vezes dando um tom alarmante aos últimos acontecimentos em Vila Feliz. A partir daí, o espetáculo retorna ao início da história para começar a contar ao público como se instaurou toda a indignação popular anunciada.


A história é baseada no conto de Aníbal Monteiro Machado, cujo livro de estreia foi “Vila Feliz”, publicado pela primeira vez em 1944 e revisado para nova publicação em 1959, com mudanças significativas entre uma versão e outra (TEIXEIRA, 2022). O autor, mineiro de Sabará, retrata elementos da sociedade mineira da época a partir das histórias que envolvem os costumes, intrigas e hábitos dos seus personagens. A transposição do texto literário para a cena aposta em uma linguagem que se organiza ora pela narração direta ao público, ora pelo texto dramático e pela contracena entre os personagens. Essa escolha contribui para a clareza da comunicação com o público, uma vez que, por se tratar de uma proposta de teatro para a rua, na qual se pretende contar uma história com começo, meio e fim, é relevante uma linguagem que permita comunicar de forma nítida e rápida sobre os personagens e suas ações com um maior número de espectadores.


Além disso, de acordo com o programa do espetáculo, a Cia. Pierrot Lunar optou por preservar o texto literário na maior parte do espetáculo, explorando o diálogo entre a literatura e o teatro a fim de valorizar ambas as linguagens. A segunda versão do conto, segundo Teixeira (2022), valoriza ainda mais uma narração heterodiegética na qual o leitor vai se informando dos fatos por meio de diferentes personagens como quem vai descobrindo uma história a partir de boatos. A montagem mantém essa essência ao explorar a visão de vários personagens que vão assumindo a função de narrador ao longo do espetáculo.


No centro da história, está o machismo e uma personagem feminina que sofre com a impossibilidade e as consequências de fazer suas próprias escolhas por caminhos que a sociedade considera uma contravenção: não querer se casar ou ter filhos. Helena, dita a mais bela da cidade, não quer seguir a sina de todas as demais mulheres da vila e, por isso, tenta encontrar saídas para sustentar sua posição, que acabam culminando na fuga da cidade que lhe fez tanto mal.


Ao final, após acompanhar as angústias da protagonista, me parece que o público comemora seu destino corajoso de não se submeter mais àquela situação e ganhar o mundo com a ajuda de um parceiro inesperado. A única opção encontrada pela personagem foi a fuga diante da impossibilidade de fazer valer os desejos para seu próprio corpo naquela sociedade. Apesar de parecer absurda, a situação infelizmente não foi superada por completo até hoje e muitas mulheres ainda são submetidas às vontades de seus pais, irmãos e maridos quando o assunto é o matrimônio e a constituição de uma família.


Ressalta-se ao longo da narrativa a falta de apoio das outras personagens femininas, que são, na verdade, as principais vozes, ao longo da montagem, responsáveis por cobrar da protagonista um posicionamento conservador e uma aceitação às normas da sociedade mesmo sabendo que isso lhe trará infelicidade. A ideia de que o machismo também é perpetuado e alimentado por essas mulheres fica evidente quando Helena é atacada por aquelas que poderiam ser solidárias, entender as questões latentes para ela e sustentá-la em sua busca por liberdade.


Foto de Tomás Oliveira 


Soma-se a isso a forma como a imprensa encara a história e transmite mensagens sensacionalistas. Como mencionado anteriormente, o público recebe no início do espetáculo um jornal impresso que traz a manchete do principal acontecimento na cidade de Vila Feliz. A forma como a reportagem é trazida em cena diz muito da violência que a imprensa calcada em exageros, ou até mesmo em notícias falsas, promove. As consequências são os julgamentos e conclusões precipitadas, sem escutar os envolvidos ou apurar de forma aprofundada os fatos.


A história traz várias reviravoltas que são narradas por diferentes personagens, como mencionado anteriormente, promovendo dinamismo para as cenas e colaborando para a pluralidade de visões de acordo com o olhar do personagem que assume a narração. As reviravoltas da narrativa também contribuem para criar um tom melodramático em um espetáculo que aposta nesse recurso para explorar o humor. Mais uma vez, a escolha pela rua dita caminhos ao convocar para uma expressividade mais intensa que mantenha os espectadores atentos apesar da dispersão inerente ao espaço público.


No entanto, o melodrama, que não está presente necessariamente o tempo todo no espetáculo, contribui com outro elemento fundamental para a encenação: o jogo. A ideia de uma personagem envolta em estereótipos, de uma entonação vocal mais forte e de gestos grandes e expressivos mostra à plateia o frescor do brincar em cena, da representação no seu sentido mais fundamental que é o de fingir ser um outro. Essa atmosfera envolve os espectadores e os aproxima dos atores a partir do pacto do que é fazer e viver teatro.


Nesse sentido, é como se o espetáculo contribuísse para uma reconexão ou memória ao próprio eixo elementar do que é o teatro: a simplicidade do jogo, centrado na figura do ator, em diálogo com o público. Um dos aspectos que chama a atenção é a ausência de amplificação das vozes por meio de microfones. Havia algum tempo que eu não via atores encarando o teatro na rua sem esse recurso. Foi muito prazeroso escutar a voz dos atores como ela é e participar de uma experiência de teatro que carrega uma certa intimidade e uma escuta ativa.  Observava-se o silêncio produzido no parque porque havia um limite natural na intensidade vocal alcançada pelos atores. Foi quase como uma redescoberta: era assim que se fazia antigamente. E esse foi um dos aspectos, ao contrário do que se poderia imaginar, que aproximou os atores dos espectadores. Ou seja, dizendo de outra forma, uma certa dificuldade para ouvir exigiu mais atenção do público e provocou uma aproximação com a cena.


A força da música na encenação contribuiu ainda mais para essa sensação de redescoberta. Nesse sentido, o saudosismo das canções de serenatas do início do espetáculo se uniu à trilha sonora e à música executada ao vivo para ampliar as nuances entre as cenas e produzir números coletivos que remetem ao teatro musical. Essa presença da música, também sem recursos para amplificar o som, toca em uma certa intimidade no fazer e atrai o espectador que é convocado a cantar junto aos atores.


Todos esses elementos, portanto, conectam a montagem a um tempo no qual o teatro era produzido com menos recursos tecnológicos e mais simplicidade no jogo com a plateia. A ideia de se produzir hoje um acontecimento cênico à moda antiga, por assim dizer, gera uma nostalgia de quando eu era criança e assistia com mais frequência espetáculos na rua. É importante ressaltar que o espetáculo estreou em 2011 e isso pode ser fruto inclusive dessa distância, 13 anos atrás.


É importante citar ainda que a reestreia se insere no contexto das comemorações de 30 anos da Cia. Pierrot Lunar, grupo que possui uma trajetória importante na capital mineira com a criação de diversos espetáculos ao longo desses anos, como outra adaptação literária para o teatro intitulada “Atrás dos olhos das meninas sérias”, além de manter uma sede que recebe não só seus trabalhos como vários outros artistas para ensaios e apresentações há 16 anos.

Foto de Tomás Oliveira 


A apresentação de “Acontecimento em Vila Feliz” no Parque Municipal em Belo Horizonte se conclui com uma frase que não faz parte do espetáculo, mas inspirou as reflexões finais desse texto. Escuto quando uma mulher jovem que estava no público na saída do espetáculo diz a uma amiga: “_Que saudade de teatro, tem um tempão de não vou…”. Penso como é importante o teatro de rua, como é fundamental recuperar essa aproximação do teatro com o povo no espaço público.


A força da montagem da Cia. Pierrot Lunar se dá não só pelo trabalho bem feito do ponto de vista da encenação, mas, sobretudo, pelo fato de trazer o teatro para a rua, o parque ou a praça e promover esse despertar pelo desejo do teatro. Nesse sentido, a saudade de teatro revela a dor da ausência, no entanto, acima de tudo, demonstra o desejo latente que muitas pessoas ainda sentem mesmo que não sejam espectadores frequentes.


Apesar de termos tido algumas experiências em Belo Horizonte, tenho a sensação de que o número de montagens de teatro para a rua se reduziu consideravelmente nos últimos anos. Sabemos que carrega consigo muitos desafios, mas é preciso lembrar também que é o mais democrático e mais aberto a conquistar quem se vê atropelado pelos dias corridos e se mantém distante do teatro.


O teatro de rua traz a potência do encontro com aqueles que nem sabiam que estavam precisando de um pouco de teatro naquele dia. Diante disso, é preciso valorizar a remontagem de “Acontecimento em Vila Feliz” e fortalecer novas produções teatrais que sejam capazes de ampliar a relação do teatro com a cidade e seus diferentes públicos.


FICHA TÉCNICA


Versão teatral do conto de Aníbal Machado

Gênero: Drama Musical

Direção geral: Léo Quintão

Dramaturgia e Orientação de Pesquisa de Linguagem: Juarez Guimarães Dias

Direção musica e Trilha sonora: Luiz Rocha

Atuação: Cris Diniz, Léo Quintão, Luiz Rocha, Mariana Câmara, Neise Neves, Ronaldo Jannotti e Jéssica Tamietti

Figurinos e adereços: Ricca

Confecção de figurinos: Renata Mendes

Reforma e Manutenção de figurinos: Tereza Bruzzi e Carlos Selim

Cenário, objetos de cena e adereços: Cia. Pierrot Lunar

Orientação cenográfica: Ed Andrade

Coordenação de produção: Léo Quintão e Neise Neves

Produção executiva: Ana Cecília

Apoio logístico: Arthur Barbosa

Assessoria de imprensa: Beatriz França

Vozes em off: Ronaldo Jannotti, Juarez Guimarães Diaz, Léo Quintão e Mariana Câmara

Realização: Cia Pierrot Lunar


REFRÊNCIA BIBLIOGRÁFICA

TEIXEIRA, Marcos Vinícius. Um barco invisível num rio sem margens: uma análise de “Acontecimento em Vila Feliz”, de Aníbal Machado. Nau Literária, Porto Alegre, v 18, n. 3, p. 88 a 98, Set./Dez. 2022. Disponível em: <https://seer.ufrgs.br/index.php/NauLiteraria/article/view/123925>. Acesso em: 21 set. 2024.

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